sexta-feira, 9 de abril de 2010


AO LONGE O MAR
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Porto calmo de abrigo
De um futuro maior
Ainda não está perdido
No presente temor
Não faz muito sentido
Já não esperar o melhor
Vem da névoa saindo
A promessa anterior
Quando avistei ao longe o mar
Ali fiquei
Parada a olhar
Sim, eu canto a vontade
Canto o teu despertar
E abraçando a saudade
Canto o tempo a passar
Quando avistei ao longe o mar
Ali fiquei
Parada a olhar
Quando avistei ao longe o Mar
Sem querer, deixei-me ali ficar
.
Pedro Ayres de Magalhães

REFLEXOS
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Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite
.
E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:
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o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,
.
invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.
.
Ana Luísa Amaral

QUEM ESCREVE
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Quem escreve quer morrer, quer renascer
num ébrio barco de calma confiança.
Quem escreve quer dormir em ombros matinais
e na boca das coisas ser lágrima animal
ou o sorriso da árvore. Quem escreve
quer ser terra sobre terra, solidão
adorada, resplandecente, odor de morte
e o rumor do sol, a sede da serpente,
o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,
o negro meio-dia sobre os olhos.
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António Ramos Rosa

AS PORTAS
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A porta aberta
a porta fechada
a porta.
Porta é o instrumento
que corta a relação do dentro
com o fora.
As casas têm uma porta de entrada.
Passada essa porta
ficamos dentro
mas fora de outros dentros agora.
As casas estão cheias de portas
porque as casa estão cheias
de dentros comunicáveis
os quais dentros têm outros dentros
os irremediáveis dentros dos armários.
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Salette Tavares

FOLHA
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Era uma folha pousada
no cotovelo do vento:
e pairava, deslumbrada,
entre morte e movimento.
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Era uma folha: lembrava,
de tão frágil, o momento
em que a vida me ficava
escrava do teu juramento.
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Era uma folha: mais nada.
Antes fosse esquecimento!
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David Mourão-Ferreira

POÉTICA
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O que é a poesia?
uma ilha
cercada
de palavras
por todos os lados
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Que é o poeta?
um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto
um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem
.
Cassiano Ricardo

PLOFT
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escrever poesia
algumas vezes
é como jogar
pedra em açude
.
as ondas se formam
e a gente descobre
que aquilo não é
poesia
.
é física
.
Lau Siqueira

OLHAR
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Olhas-me entre a surpresa e o desencanto
e eu fico embaraçado ante esse olhar:
nada podia perturbar-me tanto
como uns olhos roubados ao luar
das noites em que o tempo e o lugar
se faziam de espuma, luz e espanto.
Mas o que importa, sobre a ruinosa
erosão dos desenganos,
é esta força de quem ousa
amar-te acima do passar dos anos.
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Torquato da Luz

OLHOS POSTOS
NA TERRA

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Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.
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Eugénio de Andrade

SUA VOZ
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Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando
.
Ferreira Gullar

SE FOSSES LUZ
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Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: - a luz do dia!
- Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água - música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
- Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!
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António Botto

O silêncio não quer ser sozinho então ele fala.
Quem escreve ouve porque cala.
Quem escreve escava
O que o silêncio palavra.
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Viviane Mosé

NÃO É O CORAÇÃO
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Não é o coração
mas esta carne
em seu rumor.
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Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor.
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Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.
Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.
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Ana Marques Gastão

Quero a doçura do mel,
a leveza da pluma,
a inocência da criança,
a beleza da rosa,
o sonho mais bonito,
a pele feito seda,
o olhar de DEUS,
o caminhar manso,
o falar delicado
e o peito cheio de amor.
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Cassia Da Rovare

PELO FIM DA TARDE
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Era um dia, pelo fim da tarde,
o sol descia sobre
o sentimento da vida.
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João Miguel Fernandes Jorge

NA LEVEZA DO
LUAR CRESCENTE

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na
leveza do luar crescente
sobe
a ilusão da felicidade
que
teu gesto distraído
me dá
.
como se
plumas vogando suaves
na brisa
fossem
vida de pássaro apodrecendo
na
leveza do luar crescente
.
Arlindo Barbeitos

AS IMPENSÁVEIS PORTAS
DA ILUSÃO

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O que é que leva o meu barco
para esta praia
onde um poder esquivo
se contenta
com a ambígua oferta de palavras?
.
Estamos aqui
no exíguo barco do desejo
exibidos
na frágil singularidade do verbo
.
Insatisfeitos sempre
aguardamos
que se abram
as impensáveis portas da ilusão
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Ana Hatherly

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM
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Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
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Alexandre O'Neill

IDEALISMO
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Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
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O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!
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Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —
.
E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!
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Augusto dos Anjos

SONETO DAS PERGUNTAS
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Por que uma vária vela vento em fora
me arrasta para além daquela curva,
e esta âncora, revendo atrás e aurora,
prende meu lenho sob uma água turva?
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Quando eu não for, como será o mundo?
Houvera o mesmo chão, se eu não houvesse?
A reta mão não toca o céu profundo;
como o tocara a voz de oblíqua prece?
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Por que sou mais mortal e mais ausente
na distância fechada à minha frente?
Quem me esvaziou de mim, de hoje e de aqui?
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Entre que relva, em que porão nefando
ou absurda cisterna está vagando
aquele que já foi — e que perdi?
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Abgar Renault

O VERSO
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O reverso de mim
Clama que eu aceite
O inverso do que sou.
Diz-me que te amo
Só para provar
Que o verso que componho
Ainda que inverso
Só saiba falar deste amor
Intenso, imenso,
Imerso dentro de mim.
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Cassia Da Rovare

ANOITECER
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A luz desmaia num fulgor d’aurora,
Diz-nos adeus religiosamente…
E eu, que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui… outrora…
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Não sei o que em mim ri, o que em mim chora
Tenho bênçãos d’amor pra toda a gente!
Como eu sou pequenina e tão dolente
No amargo infinito desta hora!
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Horas tristes que são o meu rosário…
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Meu áspero e intérmino Calvário!
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E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho…
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive…
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Florbela Espanca

É PRECISO NÃO ESQUECER NADA
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É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
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É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
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O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
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O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
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O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.
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Cecília Meireles

DIA DE CHUVA
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Amanheceu a Chover
Na vidraça do meu quarto,
A bater, impertinente.
A chuva lembra uma queixa
Dolorosa, sem remédio!
Ninguém passa! Nesta rua
Moro eu e mora o tédio.
O vento atira com ela
De encontro a minha janela;
E ela, a chuva, batucando
Na vidraça do meu quarto,
Fica escorrendo e alagando
Esta indecisa luz fria
Que põe sintomas de um véu
Negro e solto pelo céu.
E a chuva cai, não abranda,
Insiste,bate,fustiga,
E o dia avança e vai abrindo mais
O seu curso de lentas melodias
Diluídas no corpo de existência
Através de um rosário de ilusões.
São sempre assim estes dias
Tristíssimos como a história
De uma ansiedade partida!
Chuva, névoa,desconforto,
A imagem da minha vida!
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Antonio Botto

A VERDADE
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A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade,
E a sua segunda metade
Voltava igualmente com meios perfis
E os meios perfis não coincidiam verdade...
Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual
a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar.
Cada um optou conforme
Seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.
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Carlos Drummond de Andrade

A MÚSICA
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Arrasta me por vezes como um mar, a música!
Rumo à minha estrela,
Sob o éter mais vasto ou um tecto de bruma,
Eu levanto a vela;
Com o peito prá frente e os pulmões inchados
Como rija tela,
Escalo a crista das ondas logo amontoadas
Que a noite me vela;
Sinto vibrar em mim as inúmeras paixões
De uma nau sofrendo;
O vento, a tempestade e as suas convulsões
Sobre o abismo imenso
Embalam me. Outras vezes é a calma, esse espelho
Do meu desespero!
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Charles Baudelaire

JARDIM PERDIDO
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Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.
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A verdura das arvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.
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A luz trazia em si a agitação
De paraisos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.
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Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possivel e perdido.
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Sophia de Mello Breyner Andresen

CHUVA
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Chove como sempre. E,
como sempre que chove,
as pessoas abrigam-se
(as que não estavam à
espera que chovesse);
ou abrem, simplesmente,
o chapéu-de-chuva – de
preferência com fecho
automático. Porque, quando
chove, todos temos de
fazer alguma coisa: até
nós, que estamos dentro
de casa. Vão, uns, até
à janela, comentando:
‹‹Que Inverno!››; sentam-se,
outros, com um papel
à frente: e escrevem
um poema, como este.
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Nuno Júdice

POUSAS A CABEÇA...
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Pousas a cabeça num travesseiro que ficou na infância.
Pedes a alguém que acenda a noite.
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O ofegar de um paraíso onde caem uma por uma as lendas...
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Houve ontem? haverá amanhã? - eis renascem de teus pés
rotos sapatos, desencantada música, um ou outro arrepio
de mão insensata colhendo flores que não desabrocham nunca.
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Alphonsus de Guimaraens Filho

NOITE
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Noites minhas
Calmas, tempestuosas.
À noite sempre sei
O que fazer
Muitas coisas pra dizer.
A lua, as estrelas,
Fazem-me renascer.
Metamorfose de mulher
Saindo do casulo
Voando, voando.
O cantar dos grilos
Que povoam meus pensamentos
A rede na varanda.
Lugar perfeito
Pra eu sonhar, amar.
Vem noite sobre mim
Possua-me aqui neste jardim
Não me faça despertar
Lambe meu corpo
Com teus ventos,
Noite
Açoite de paixão.
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Cassia Da Rovare

FRONTEIRA
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Há o silêncio das estradas
e o silêncio das estrelas
e um canto de ave, tão branco,
tão branco, que se diria
também ser puro silêncio.
Não vem mensagem do vento,
nem ressonâncias longínquas
de passos passando em vão.
Há um porto de águas paradas
e um barco tão solitário,
que se esqueceu de existir.
Há uma lembrança do mundo
mas tão distante e suspensa...
.
Há uma saudade da vida
porém tão perdida e vaga,
e há a espera, a infinita espera,
a espera quase presença
da mão de puro mistério
que tomará minha mão
e me levará sonhando
para além deste silêncio,
para além desta aflição.
.
Tasso da Silveira

ÚLTIMO RAIO DE SOL
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Vem baixando o crepúsculo de leve...
Eu bem o sinto na paisagem fria
E sobre os meus cabelos em que a neve
Envolve a noite que se prenuncia.
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A mão já se emociona quando escreve,
Os olhos baixam porque morre o dia.
Todas as vozes se calaram... . Breve
Será mais triste a vida e mais vazia.
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E’ a hora em que oscila a chama da esperança.
Adoro-a de mãos-postas, hora mansa,
De calma, de renuncia, de perdão.
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Mas na tarde que rola num desmaio,
Hás de ficar comigo, último raio,
Para aquecer-me a sombra pelo chão...
.
Olegário Mariano

ÉTICA
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Vou falhando as pequenas coisas
que me são solicitadas.
Sentindo que as ciladas
se acumulam cada vez que falo.
Preferi hoje o silêncio.
A ausência de equívocos
não é partilhável.
No inegociável deste dia,
destituo-me de palavras.
O silêncio não se recomenda.
Deixa-nos demasiado sós,
visitados pelo pensamento.
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Luís Quintais

TU ÉS A ESPERANÇA,
A MADRUGADA

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Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de Setembro,
quando a lua é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.
.
Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.
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Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.
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Eugénio de Andrade

AMIGO
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que um amigo se reconheça
sempre
na face de outro amigo
e nesse espelho descanse
seus olhos
e derrame sua alma
como a crina de um cavalo
levemente pousada no vento
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Roseana Murray
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DO DEMASIADO TARDE
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Há coisas bem piores
do que ser sozinho.
mas às vezes levamos décadas
para percebê-lo.
E ainda mais vezes
é demasiado tarde.
E não há nada pior
do que
demasiado tarde.
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Charles Bukowsky

Leva-me a um lugar onde a paisagem
Se pareça àquela das visões da mente.
Que seja verde o rio, claro o poente
Que seja longe e leve a minha viagem.
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Leva-me sem ódio e sem amor
Despojada de tudo que não seja
Eu mesma. Morna estrutura sem cor
A minha vida.E sem velada beleza.
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Leva-me e deixa-me só.
Na singeleza
De apenas existir, sem vida externa.
E que nos escuros claustros do poema
Eu encontre afinal minha certeza.
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Hilda Hilst

... COM UM SÓ FÓSFORO
ILUMINO O INFINITO

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Com um só fósforo ilumino o infinito.
E muitas vezes o infinito é algo
muito próximo, um livro, uma chávena
de chá, o teu rosto escondido
na penumbra, o retrato de alguém desconhecido
que de uma praça, acena,
um fio de tabaco, um monograma
num lenço muito branco.
O infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração,
uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo
que a mão ousa tocar, esta chama
que de repente amplia a escuridão
e me torna visível a quem passa
e no clarão acende o seu cigarro.
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Amadeu Baptista

BÚZIO DO MAR
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Praguejam pescadores: Ora esta, ora esta;
O mar na praia é um tambor em festa!
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Danado e rouco ele há lá quem o fateixe!
O mar não anda bom...
E som, e som, som-som,
Deita a fugir o peixe.
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Meus patrícios, poveiros tal e qual
É a nobreza maior de Portugal!
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Mesmo sou duma aldeia à beira-mar,
E ouço-o bem duas léguas em redol:
Meio ano a lavoirar,
Outro meio ao anzol!
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Meus patrícios cada qual
Tem o seu bote que é o seu casal.
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Mas o oceano, o mar, não anda bom:
Ondas são trambolhões, e trambolhões de som!
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Ó mar, meu brutamontes,
Música, deixa ouvi-la da noitinha;
Eu quero ouvir o murmurar das fontes
Que a noite já se avizinha...
.
Afonso Duarte

"É assim que imagino Deus,
como um fino fio de nylon, invisível,
que procura minhas contas
no fundo do mar
e as devolve a mim
como um colar."
.
Rubem Alves

quarta-feira, 7 de abril de 2010


Veio o outono em tons castanhos
e esse vento de desatino,
leva e traz em meio às folhas,
ao longe...o som de um violino.
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Foram-se as primaveras e os verões!
Na rodopiante roda do tempo,
giram inexoráveis as estações!
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A cada novo outono
fico mais perto de meu inverno,
caem minhas flores,
amadurecem meus frutos.
.
Só o coração...é eterno menino.
E o vento continua trazendo
perdidos em sua dobras,
pálidos acordes de violino.
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Lenise Marques


NOTURNO DO ANDARILHO
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Em todos os cumes:
sossego.
Em todas as copas
não sentes
um supro, quase.
Os passarinhos calam-se
na mata.
Paciência, logo
sossegarás também.
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Johann Von Goethe
(Tradução de Rubens Torres Filho)

TEORIA DA ROSA ANCORADA
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De nada vale o êxtase da viagem
na alma sem viagem das flores;
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pois as imóveis pétalas das flores
jamais vêem a brisa adormecida
ao lado das folhas secas, nem pressentem
sons de violinos emergidos da lua,
talvez porque suas reservas da alegria
estejam armazenadas nos sujos porões do sono.
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Inútil será o êxtase da viagem
na alma sem viagem das flores,
-jamais reanimadas do seu sonambulismo.
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Colombo de Sousa

COMO É UMA PESSOA POR DENTRO
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Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
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Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
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Fernando Pessoa

AURORA
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A poesia não é voz - é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:
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voo sem pássaro dentro.
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Adolfo Casais Monteiro

ACONTECIMENTO
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Aqui estou, junto à tempestade,
chorando como uma criança
que viu que não eram verdade
o seu sonho e a sua esperança.
.
A chuva bate-me no rosto
e em meus cabelos sopra o vento.
Vão-se desfazendo em desgôsto
as formas do meu pensamento.
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Chorarei toda a noite, enquanto
perpassa o tumulto nos ares,
para não me veres em pranto,
nem saberes, nem perguntares:
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«Que foi feito do teu sorriso,
que era tão claro e tão perfeito?»
E o meu pobre olhar indeciso
não te repetir: «Que foi feito...?»
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Cecília Meireles

O BANDOLIM
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Cantas, soluças, bandolim do Fado
E de Saudade o peito meu transbordas;
Choras, e eu julgo que nas tuas cordas,
Choram todas as cordas do Passado!
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Guardas a alma talvez d'um desgraçado,
Um dia morto da Ilusão as bordas,
Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes, bandolim do Fado.
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Quando alta noite, a lua é fria e calma,
Teu canto vindo de profundas fráguas,
É como as nênias do Coveiro d'alma!
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Tudo eterizas num coral de endechas...
E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!
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Augusto dos Anjos

O BEIJO
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Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
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Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
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É uma ave estranha colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
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E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...
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Alexandre O'Neill

E AO ANOITECER
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e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
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Al Berto